Retratos Triviais

sábado, 2 de abril de 2016

Matrizes e Canários

É manhã. Uma brisa leve afaga a cidade, numa carícia com ares de alívio. O dia ainda está se espreguiçando, estendendo seus braços de uma luz amarela sonolenta, iluminando as coisas devagarinho e sem pressa. O cheiro de café mal se eleva no ar, ainda preso dentro dos hálitos dos madrugadores: dos mendigos, dos guardas, dos universitários. 

De repente, num estalar dos dedos do Tempo, o ritmo da vida se atropela. O dia torna-se abarrotado de pés apressados, de suspiros cansados, de resmungares famintos. As salas abafadiças enchem e enchem, logo povoadas pelo arrastar das cadeiras e o estacionar das mochilas. Os professores, protagonistas da manhãs agitadas, começam a repetir o empoeirado ritual de ensinar, abrindo livros e selecionando gizes. Sem perceber, ou percebendo sem se importar, adotam um peculiar tom de voz, compartilhado na essência de todos eles, que faz ares de padre e juiz, de salmo e sentença.

Então, num sutil passe de mágica, teoremas, corolários e outras entidades etéreas iniciam a tortuosa jornadas rumo aos cérebros incautos dos estudantes. São como gordos coelhos a abandonar cartolas velhas e rotas, a abrir caminho, nem de todo gentilmente, para dentro de cabeças novinhas em folha. Ah! Pobres cabeças que parecem aquecer-se, estagnando o ar da faculdade em desconforto.

O dia passa, agora ligeiro e perpetualmente atrasado, e o calor cresce e cresce, se tornando um corpo vivo e cheio se braços, agarrando tudo a sua volta e devolvendo tudo ao cansaço. Uni-se a eles a cacofonia dos toques rápidos dos gizes nos quadros negros, a melodia do bailar etéreo dos x's, y's e z's, das equações e dos gráficos, dos círculos e das matrizes. Saturados, os alunos se espalham pelas mesas, se recostam nas paredes, e, em seus íntimos secretos, dormem. 

Enquanto isso, na redoma de vidro de onde os gênios prevem a vida, há cálculos sendo criados para desvelar o mundo. Nos corredores labirínticos dessa universidade há salas onde as perguntas são respondidas, as verdades são dissecadas, onde laboriosamente se constrói o Saber. Há ciência, há mudança e há, além de tudo, beleza. Numa faceta escondida dos olhos inertes, aqui pulsa a Matemática, o brinquedo dos gênios: por nós humanos criada e que a nós humanos entretêm.

Mas lá fora, por trás das janelas de grades, das paredes sujas, do labutar em aprender e ensinar, a brisa ainda fresca. Os pássaros salpicam a grama de cores solares. Os canários procuram sementes de capim, saltinhando sem rumo por entres as pedras do calçamento, e cantam, sem propósito e sem pudor. Lá fora, ao menos, nem é preciso desvelar o mundo, só basta vivê-lo.

domingo, 20 de março de 2016

Falemos de Domingo


Há sempre quem fale das Segundas. E quem as odeie, com aquele ódio fervoroso, que nem mesmo ferve tanto assim, mas que sempre reservamos para as entidades incorpóreas, aquelas que não sentem dor, que não causam culpas. O Calor, a Chuva, a Crise, a Dor de Cabeça, o Governo. É simples odiá-las, como é simples odiar as Segundas, com seus recomeços, tropeços, sonos interrompidos e rescaldos de almoços passados. É mais que fácil odiar Segundas, quase um costume, que acabamos por abraçar quase com carinho e que não hesitamos em saudar todas as semanas. No fundo, no fundo, sabemos que gostamos da rotina desse odiar passivo, sem pretensões de ações raivosas, que se contenta com uma reclamação esporádica e um resmungo vez ou outra.

Mas e o Domingo? Por que não falamos dele? Daquele diazinho antes da tão afamada Segunda, aquele final tão final do fim da semana, que nem mais parece dia de folga, que se encolhe com ares de preguiça e enfado. Domingo, o dia da missa na Igreja do bairro, da visita à tia velha no asilo, do churrasco com o cunhado mal-humorado e o avô senil. O mesmo dia que marca a data de lavar carro, de regar a pimenteira seca no jardim, de assistir Fantástico e Faustão. Domingo, o sagrado dia de abarrotar-se com coisas que não queremos que abarrotem outros dias, outras horas, outros momentos – por que esses, mesmo que pobremente, ainda resguardam a possibilidade de guardar acontecimentos felizes, ainda revestem-se de esperança. Ao Domingo, aguardamos sem esperar surpresas, como se já o tivéssemos visto, todo cinza de monotonia.

Ó Domingo, que pobre, que triste, que desesperançoso tu és. Eis nós aqui, a digerir o almoço, a cochilar de preguiça, a sentir calor e canseira. E a pensar no futuro, a planejar a semana, a elaborar regimes e grades de estudo, a tentar apalpar o amanhã. O amanhã que será uma ditosa Segunda, cheia de resmungos e bocejos, que mal sabe que o ontem, ou o hoje, era Domingo, dia de economizar a vida para gastá-la outro momento qualquer.

domingo, 13 de março de 2016

Faculdade é Final Implícito


Final sim, precoce aos 20 e poucos anos, porque o depois é desconhecido, zona embaçada e pálida, como as colinas quase azuis que vão se misturando às nuvens, devagarinho na linha do horizonte. Porque a pergunta que entremeia do nosso jardim de infância ao ginásio - “O que você vai ser quando crescer?” - é sobre o seu futuro curso de graduação, sobre o papel digitado as pressas que levará teu nome junto a um “aprovado”. A vida depois, todos aqueles 40... 50 anos, é território para vidente, astrólogo, previsor das variações da Bolsa... é terra de impalpável cogitação.

E além de final, é final implícito, escondido na mente de cada pai, mãe, tio, primo, professor e, pasme, também na sua. Nesse país de classe média urbana, ir para faculdade é diretriz quase tão arraigada quanto um padrão de decência no anos 50, traçando uma linha rígida e afiada entre o certo e o condenável. Ofendê-lo é quase blasfêmia, tão obscura que a ela é negada até o luxo de ser falada em voz alta. Ai das viagens, descansos, trabalhos... todas justificativas fúteis e frágeis frente ao que a vida deve ser, deve se tornar. Talvez, naquelas deleitáveis realidades de famílias compassivas e abonadas, você possa conseguir um ano ou dois de manobra, mas não se engane, o fim já está definido. 

sábado, 12 de março de 2016

Corpo por Rosa


Sou apenas mais uma louca na estação
Damas me julgam, mocorongas carolas 
Rezando, juntam meu nome a uma oração
Doravante, grito: "Guardem as esmolas"

Os meus amores, onde estão, senhoras?
Eu era outrora, das damas a mais bela
Agora, eu em casos, cacos em penhoras
Mas a lembrança do amor ainda é singela

Ah, venderia meu corpo por uma rosa!
meu sangue: por só mais uma canção
Rasguem-me se preciso, por uma prosa!
Uma palavra basta, para a redenção 

domingo, 4 de outubro de 2015

Caçadora de Ártemis

Sob uma genuína chuva primaveril, eu volto à cidade. Ao passar dos minutos, o cheiro limpo de eucalipto perde-se dentro da fumaça dos carros. Os ruídos surgem, lenta mas progressivamente; ainda abafados pelo vento fresco que flui das janelas do ônibus. Eu volto a cidade... Rumo a minha nova casa, desconhecida e não familiar, cheia de cômodos vazios e silêncios empoeirados. 

Meu novo quarto já não tem a vista para uma colcha de retalhos de janelas de prédios. Minha cama dessa vez foi montada por um par de amigos. Essa casa é grande, peculiar nos diferentes tons dos pisos. Suas paredes me espiam de rabo de olho, sou uma jovem intrusa onde um amontoado de anos - e histórias - me oprime. Não reconheço os cheiros nem os pecados da vida vivida aqui.

Esta é apenas mais um república nessa cidade de escolas e bares... Mas será um lar? Não conheço os rostos que habitam nos quartos ao lado. Não sei ler a  cor de seus sorrisos. Serão tímidos, curiosos, indecisos? Serão? ou só estão, como a maioria das vidas? A mudança é agridoce, triste e esperançosa: fumaça e eucaliptos.

Há um terraço, espaçoso e aberto, acolhedor em sua falta de amarras e expectativas. Dele, vejo uma nova cidade que parece estranhamente a minha. Meus amigos não podem ter essa vista, no entanto. Homens aqui não são permitidos. Minha veia dramática - ou será coração? - me oferece uma metáfora com um floreio sôfrego. Sou eu caçadora de Ártemis, em uma Roma cuja pristina brancura tornou-se cinza chumbo, mas cujos templos permanecem, variados e díspares com as facetas da fé. 

Mais na poesia pulsante deste dia onde as nuvens espelham as cores desta nova Roma, sei o que sou. Apenas uma menina, que acha que a vida anda pesada demais.  

domingo, 5 de julho de 2015

Ternas Vulgaridades



Ao longe, meu amor grita-me
E o vento o ecoa: "Devassa!"
Respondo, sôfrega, num suspiro
"Pois vá, Libertino!"

E no calor das ofensas, 
sorrimos... Ah! Sorrimos.
E logo, tão logo, rimos,
nos braços e lábios unidos

E voltamos, sem termos ido.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Restam Pétalas


Olhai, moço, um rubor floresce!
Na rosa que foi feita lábios.
Sob toque de dedos, estremesse
no delírio de amores falhos.

Deflora a flor, que o apetece,
com teus olhos maculados.
Suja o sangue que a aquece
com a doçura dos pecados.

E no delírio que enlouquece
depois, fuja dos seus atos.
Renegue a flor que não esquece
os teus desvarios insensatos

sábado, 11 de abril de 2015

Ilusão Vulgar


Meu amor estará para mim tal qual um delírio desgarrado. Um pecado justificável. Um delírio sem fim. Será inútil e desconcertante, o pior amigo e o melhor amante. Terá a risada barulhenta e o gênio ruim. E as declarações? Haverão? Não, não. Pois ele será seco como as boas bebidas e cru como os bons homens. Sem floreios, senhores. Não me venham com floreios. A elegância que fique em seu pedestal, que eu viverei bem aqui em baixo. Meu amor virá descalço, usando a mais velha de suas camisas e mais genuíno dos seus sorrisos. Terá o mais nobre cheiro de sabão, cheiro de gente que lava a consciência com o sono profundo de todas as noites. Virá com as mãos cheias de calos e o caráter imperfeito. Virá torto, mas virá.

Luzes Urbanas


A janela extensa escancarada é uma síntese da vida da cidade. Escapolem por ela um sem-fim de barulhos, resmungos, ruídos. Um carro buzina, escuto um tilintar de copos e uma criança ri. Pela mesma janela, um quadro pintado por uma miríade de luzes e retas me mostra todo um mar de apartamentos, casas, ruas e prédios. A noite revela, dia após dia, as janelas abertas dos humanos insones, com as luzes acesas que desatinam em ser mais uma das estrelas na constelação meditativa da cidade.

Encaro as janelas e por um minuto, todas são espelhos. Talvez seja isso a sintonia que a humanidade carece, ver irmanado em cada prédio, duzias e mais duzias das próprias dúvidas e desejos. Está tudo lá, em diferentes medidas, os mesmos dessabores e desventuras. Nesse segundo que já passou antes mesmo de ser descrito, todos partilham de um irrecuperável sabor agridoce de estar-se vivo nesta cidade.

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Silente Canção De Ninar


        Leio a frieza da colchas com as pontas do dedos. Sinto o frio em meus ossos, tornando-os tão frágeis quanto papel envelhecido. Um sopro de brisa gélida beija-me o nariz e afogueia as bochechas, dolorosamente familiar. Do meu canto na cama estreita, sinto a depressão do colchão; forjada pelas tantas vezes que um corpo grande demais se encolhera ali. 
Sinto-me em um mundo parte caleidoscópio e parte carrossel:  desdobrando uma nova realidade a cada movimento, mas repetindo-me infinitamente em um ciclo. A cena em que me encontro e me perco, por exemplo, está tortamente idêntica à aquela dos tempos felizes e distantes, como o reverso de um bordado. As luzes estão apagadas, a janela aberta soprando ar frio e luz das estrelas, os cobertores frios de cetim e as cobertas fofas de algodão, eu encolhida em ares lânguidos de gata, a depressão adivinhando um corpo. 
Mas falta o corpo. 
E essa falta pesa, naufragando o calor do quarto. Ele, aquele de ausência presente, é não só um corpo que afunda a cama, mas também um hálito que arrepia pelos da nuca, mãos que emolduram cintura, pernas que embaraçam pernas. É também lábios que sussurram pecados e olhos que distribuem bênçãos. Ele é parte intrínseca do meu adormecer. Como se uma forma etérea e intangível de canção de ninar fosse parte dele, como um cheiro. Como um gosto. 
Dormir nos braços dele é o abandono mais lindo, tão doce e cliché como as mais elaboradas declarações. Mergulhar no embalo de uma consciência mais leve e mais pesada, enquanto os olhos dele parecem perder-se na minha visão turva e sonolenta é o prazer mais sagrado e profano. Tão bom quanto ver a cena inverter-se pela manhã: seus olhos e rosto entrando em foco e a canção de ninar que antes fazia dormir, começa a fazer queimar.  
Mas por esta noite, resta-me o silêncio intacto e as colchas frias. 

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Novos Romeus


     O novo Romeu, senhores, é um belo espécime de sobrancelha arqueada, óculos escuros escorrendo displicentemente pelo nariz e de sorriso irônico e debochado. Com passos de encanto calculado, ele flerta com o perigo a cada passo e a cada passo desperta um suspiro entrecortado. O mais novo Romeu já tão jovem coleciona o seu quinão nada humilde de corações partidos e cartas de amor rasgadas. Migalhou uma miríade de declarações apaixonadas que, invariavelmente, tinha como par uma futura despedida lamuriosa. Ah, adorável e terrível Montecchio! Não há lábios que limpem seus pecados.
Sua Julieta poderia desfilar pela noite como uma joia alva em uma princesa etíope que ele não a veria, ou melhor, não a desejaria. Quer coisa mais inútil que a dedicação eterna, a submissão total? Dane-se os pares perfeitos, Romeu ansiava por ser solitário rodeado de muitas mulheres. Belas mulheres. Gostava de seu apartamento caro, seus bons ternos e da paz silenciosa de todos os dias. Gostava de seduzir e estender a mão para pegar o que queria. Romeu sabia-se bonito e sabia que isso abriria as portas sem que ele precisasse forçar. O menino era diamante: encantador à vista, duro e frio ao toque. E a sua vida, por sua vez, fazia as vezes de coisa simples e prática: bela, gélida e vazia.


segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Poema ao Copo


Derrama, em um gole sôfrego
o whisky, a eterna chama vã
pela garganta já sem fôlego
molhando a alma não mais sã

Vá lá, bom homem, se perder.
Imundo, feio, pernas bambas
Tens tudo o que pode querer
bebidas ou a Puta, ou ambas.

Atrás de que mais poderia ir?
Além de um cômodo, esquecer
Do seguro e doce não sentir
Tudo no copo fácil de beber

A vida sórdida goteja lenta
Como sangue cálido em veias
como a existência bolorenta
do álcool em canecas cheias

domingo, 25 de janeiro de 2015

Chuva




A chuva molha meu quarto pela janela aberta. Em algum momento vou fechá-la, em algum momento vou cuidar da bagunça molhada e em algum momento vou retornar o meu quarto para sua costumeira organização. Mas, por agora, deixo que o vento frio arrepie minhas pernas enquanto sinto o deslizar do meu edredom favorito. O barulho da chuva também me agrada, um chiar de conforto e relaxamento. Em tudo, aconchegante. 

Ainda gosto de janelas abertas. Ainda gosto do amor. Ainda gosto dos dois pelas características que os unem. A brisa que entra é como o frescor de olhos que se cumprimentam. O perigo dos terrores noturnos é como o medo de deixar-se cair; arrepiante, mas terrivelmente doce. Uma janela aberta é uma possibilidade, assim como amor também o é. Uma janela também é liberdade. Abri-la e escolher ser livre, ou permitir-se ser presa. Algo como a liberdade não de amar, mas de se permitir cair em amor.

Entre janelas e amores, perco-me em cismas inúteis. Um sorriso escorre em meus lábios quando percebo que, no fundo, todos os bons pensamentos são cismas inúteis. Do que vale a metáfora de uma janela aberta e um sentimento conjectural? Nada, nada. Não passa de poeira de estrela, carinho de nuvem e borboleta de vidro. Bonito de beleza que aperta o peito e planta um sorriso, mas irreal.

O que importa hoje é essa chuva, esse frio e esse gotejar de preguiça que enlanguesce o corpo e o espírito... Deixemos as divagações para os dias menos doces, para as horas de monotonia doente ou para quando a alma resolver que a realidade não basta. Discutamos o amor e a metáfora da janelas em outro momento que não seja o presente. Fica decidido roubarei um beijo e fecharei a janela, amanhã. Por agora, senhores, aproveitemos a chuva.

Em brisa, fogo e loucura calada





Conjurei-te nos olhos da neblina
pelo desejo de fazer-me a eleita
de um amor de brisa que espreita
e sem pressa estremesse a rotina

E um silêncio retumba em costela
vindo de um peito mudo que grita
peço pelo amor de fogo que agita
em delírio rasga, queima e apela

Quem me dera tê-lo a minha volta
Com seu sorriso de garoa e geada
e com seu amor de loucura calada
que me apavora, acalma e revolta

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Delirante



Em lástimas, sou sonho.
Irreal, delírio em pó.
Em amargura, decomponho
meu peito em curto nó.

A garganta me arranha.
"O que haverá em mim?"
Sofro em dores estranhas,
estou próximo do fim.

Como pálida lembrança
esquecida sem prejuízo,
apaga-se a temperança,
a sensatez e o juízo.

Sou de novo menino,
louco, senil e amante
Homem feito de desatino
por você - ah! - delirante.


Sonhadora e Sonhado


Se eu sou sonho teu, 
você é aquela que me sonha.
A que entre linhas me leu
e que em rimas me desfronha.

Sou teu, sem fim nem começo,
se minha doce sonhadora és.
E tudo é um infinito tropeço
em deleite, rumo aos teus pés.

Mas permita-me sonhar-te,
no balanceio do delírio.
Onde olhar-te é pura arte
e beijar-te, um calafrio.

Ou sonhemos juntos o pecado
da ânsia que enlanguesce
do sonho negro fatigado
e do amor que nos anoitece.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Meu Moço Verde

 Ah, meu moço verde.
Câmera em punho, pincéis no bolso.
A garoa fria aplaca a sede
E você, o dia insosso.

Sinto seu cheiro de canela,
eucalipto, alecrim.
Vejo-o pela velha janela
E suspiras por mim.

Cabelos em desalinho
Casaco amarrotado
Pensamentos em torvelinho
Sorriso inesperado

   Meu artista desvairado
De ombros sujos de tinta
Sou mulher ao seu lado
Nada mais que menina

sábado, 27 de dezembro de 2014

Delírio II

Amar, eis um pecado justificável. Embriagar-se em olhares alheios, emaranhar-se em mãos que se enlaçam, cair no balanceio de corpos que se envolvem. Tão fácil ceder, tão fácil entregar-se à brisa fresca de uma nova conquista, de um novo flerte. Mil vezes mais doce do que resistir é deixar-se cair em braços sedentos e abraços repletos.

Como numa dança, basta que os corpos se aconcheguem, as cabeças se inclinem, as mãos se toquem e os olhares se cruzem... No mais, tudo não passa de um ritmo comum, que permeia ambos e os move suave e docemente, num embalo de cantiga de ninar. Dance-se e ama-se, quando em dois, quase na mesma cadencia,  no mesmo lânguido deslizar inebriado.

Ah, peca-se sorrindo e sem culpas.

Sobre Ceder

Ceder a ele é como dormir de janela aberta.

No fundo, no fundo sabemos que infinitos são os perigos noturnos que podem se esgueirar rumo aos nossos quartos. Mas superficialmente, que é o que realmente conta, não podemos resistir a dormir ao embalo da brisa fresca, sob a luz das estrelas que de certa forma nos velam.

Todo ele é essa mistura complexa de algo definitivamente prejudicial com algo irresistivelmente agradável. Um doce veneno. Um flerte com o perigo. Seus olhos castanhos escuros, olhos que de tanto eu olhar se tornaram um pouco meus, sussurram promessas, vãs promessas.

Um tanto trêmula, minha mão percorre minha própria face em busca de provas. Não há marcas, mas eles ainda estão . Os vestígios. Os rastros de seu toque acariciando meu rosto. Fecho os olhos e a reencontro: a lembrança dos seus olhos em fendas e do seu sorriso adoravelmente debochado.

O cheiro da memória é forte, inebriante. Lembro-me da forma com que ele se deitou no meu colo, como se o lugar fosse dele por direito. De seus cabelos e da vontade de passar a mão por eles em um afago quase maternal. De sua voz baixa dizendo: “Leia pra mim” enquanto fechava os olhos.

E eu li. Li aquele texto medíocre sobre um tema tão medíocre quanto. Li, enquanto pateticamente segurava-me para não sorrir, sem sucesso. Mas as minhas tentativas frustradas pareciam diverti-lo e então ele sorriu. Sorriu como o bom caçador que era, vendo sua presa ali: indefesa e vulnerável.

E eu, agarrando-me a última centelha sensatez, murmurei: “Tão manipulador...”. Porque eu sabia, sempre soube. Que ele não era de todo bom, de todo puro. Havia muita dissimulação ali, muita lábia, muita malicia. E como qualquer menino mimado, o desejo de conquistar o que não poderia ter.

Mas o amor, queridos, é isso. Ceder. E quando ele disse: “Permita-se acreditar que eu sou só um humano” com olhos queimando por razões insondáveis, eu apenas puder ser sincera. Depois de tudo, eu ainda disse: “Eu acredito, sou a única que sempre acreditará. E isso só fará com que você faça-me de boba”.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Janela Diante Um Dúvida Secular

         A lua plúmbea indaga-me de seu banco etéreo: Amor; será real? Meus livros, recheados de lamúrias e declarações, respondem em uníssono: “Sim, nada mais real do que o amor”. Entretanto, não tenho plena fé em livros escritos por poetas cujos olhos insistiam em enxergar beleza em cada minucia que vissem. Já meu espelho, testemunha das olheiras que levo expostas no rosto e das cicatrizes que riscam meu peito, não desmente nem consente; receoso de que o sentimento que fervilha nos corações humanos nem seja próximo ao que tantos poetas tolos descreveram como Amor. Encaro a pena elegante, aquela com que escrevi tantas prosas repletas de amores e sofrimentos fantasiosos e inventados. Por que amor, amor mesmo, desses rubros e fervorosos que arrancam a calma e o sono, acredito que nunca tenha tido. Se senti algo, foi um sentimento que fez aumentar minha afeição por alguém, mas que não passou de um encantamento tolo e efémero. Eu, que apesar dos pesares sou romântica e morrerei sendo, tenho fé que o Amor é algo além de uma tola paixão. Para mim, amor não são provas e declarações ou desejo e obsessão. Amor é quando o menininho agarra a mão da mãe à noite e entre bocejos e pálpebras pesadas de sono sussurra: “Não me deixes”.

sábado, 18 de outubro de 2014

"Cem Vezes Penteados"

       De um lado do espelho, uma escova de madrepérola desliza sobre cabelos ondulados e castanhos. Desce do topo dos fios até as pontas e depois repete o mesmíssimo movimento, como que por encanto. 
       Do outro lado do espelho, olhos arvorais acompanhavam apáticos o movimento da escova.  De tanta preguiça,  migram seu foco para a mão que empunha a escova e observam a tensão dos dedos, a vermelhidão que se alastra pela palma.
     Vinte e sete, vinte e oito, vinte e nove... É preciso escovar cem vezes, já diziam as boas e elegantes damas da sociedade. "É preciso ter cabelos diariamente cem vezes penteados", assim como é preciso ter dentes bonitos, assim como é preciso casar bem.
        Só não é preciso ter essas olheiras. Ou essa pele já sem vigor. Principalmente, não é preciso ter esses olhos arvorais que seguem apáticos o movimento da escova. 
         Não é preciso sofrer por um amor indecente e incoerente. Não é preciso ser fria e amarga. Não é preciso ser além.
        Além de uma mulher magra, branca e bela. Além de um ser que sorri e é simpático. Além de ter, é claro, cabelos cem vezes penteados.

Embriagar-se

Trôpega, arrasto-me até o balcão da cozinha. Minhas mãos sedentas buscam em vão alento em uma garrafa vazia. Lamúrias arrastam-se pela minha garganta seca e vomito-as junto com doses de conhaque barato. Em um instante lúcido, chego a perceber a cena deprimente em que encontro-me. Vejo com clareza indesejável o estado caótico dos meus cachos castanhos sujos e minhas olheiras fundas de insônia. Entre os acessos de vômito, sorriu de escárnio para mim mesma ou melhor, para o frangalho triste do que sobrou de mim. Em um ataque improvável de vaidade, ajeito a barra rendada do meu vestido preto, ela está suja e rasgada; um triste fim para uma vestido antes tão charmoso. Sou como este velho vestido, sou um tecido surrado onde adivinha-se os contornos de uma elegância já perdida. E na marcha imparável de um Tempo exorbitante, um dia evoluirei deste resquício de veste a um trapo imundo e descorado. No fim, eu que já fui vestido de festa adornado de caras rendas e joias, não serei mais que um farrapo usado para fins banais e inglórios, tais como limpar janelas ou latrinas."

Janelas & Letras

O som das teclas da máquina de escrever perde-se no vazio da madrugada. O eco, que reside nas paredes claustrofóbicas do meu quarto, transforma o som em uma marcha ritmada. A luz fúnebre de um sol ainda sonolento filtra-se pela vidraça embaçada. Minuto a minuto, letras tortas riscam a página branca, corrompendo a pureza do papel virgem. Hora a hora, novas páginas juntam-se a pilha torta junto a escrivaninha. Depois de dias em que a mesma rotina repete-se, interrogo-me: Valerá a pena? Sinto-me receoso, duvidoso de que minhas palavras valham o esforço. O ato de escrever estas minhas tristezas e decepções é tão vão e inútil… que provavelmente não há de ajudar-me em nada. Afinal, do que adianta gritar para o vazio? Minhas palavras são recebidas por ouvidos surdos e mentes apáticas. Não há leitores, nem mesmo amigos para escutar minhas tempestades. Neste mundo falta tempo, falta paciência, falta delicadeza para aproveitar os prazeres que exigem mais dedicação. Por isso floriculturas e livrarias, lugares feitos para espíritos tenazes, ão de morrer e eu, escritor, ei de morrer junto a elas.

Delírio I

Tinha os pés descalços junto a terra úmida. Sentia as várias texturas do solo coberto por folhas molhadas. Acabava de amanhecer, mas o chão era quente assim como a brisa. Caminhava entre as árvores esparsas de uma floresta. O cheiro era palpável: junção de ervas e outras tantas plantas. No meio dos odores um se destacava: o de folhas eucalipto. O vestido púrpuro de tecidos leves caia-lhe solto no corpo. O vento outonal esvoaçava os panos, formando dois esboços de asas. Teria ela a forma de um anjo, não fosse o pecado nos olhos. Ah, olhos… Azuis como nuvens cerúleas em um céu branco. No movimentar do vestido entre um passo e outro, via-se fragmentos de desenhos negros nos seus ombros, pulsos e pés. Eram palavras, de significados insondáveis e sentidos calamitosos. Podiam formar uma oração, uma confissão ou declaração de amor. Ao certo, ninguém sabe. Antes mesmo do sol pintar o firmamento de laranja, ele já havia se posto entre os cachos do seu cabelo. E pôs-se em toda fúria e ardor, tingindo de rubro os fios curtos e emaranhado. Branco, azul, vermelho e é claro, o róseo do lábios cheios e pequenos. Era uma pintura viva, o retrato de um pecado justificável. Talvez seja só uma miragem minha ou um delírio desgarrado. Ou mais um sonho de ver cara a cara, na forma de ser sólido e concreto, a Poesia."

domingo, 17 de agosto de 2014

Deliciosamente Adorável

       Ele tem a beleza do pecado nos olhos, aquele pecado que não se vê e não se toca. O pecado que apenas se pressente, o mesmo que arrepia a pele e traz um sorriso esquivo aos lábios. Tem um quê de pimenta no jeito de sorrir, como quem sabe de um segredo insondável ou como quem está prestes a roubar um beijo. Também há algo especial na forma que ele se curva, na forma como seu corpo se reclina com ares de pássaro e de cisne. Ares de violinista, de bailarino, de desenhista. As mãos são frias, longas, aveludadas; assim como os braços elegantes. Aliás, tudo nele é elegante. Até mesmo o andar, que faz as vezes de bailado etéreo, como se a gravidade mal o tocasse. No fundo, é meio gato e meio lobo, meio criança e meio louco. E artista, enfim. Firme e correto, também. Mas, desvairado e voluntarioso em aroubos eventuais. Bonito tal como as coisas incomprensíveis que instigam  e despertam perguntas. Ele é apenas ele, deliciosamente adorável.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Janela para conversa à meia-noite / Sobre dor, escrita e talvez, pássaros

          No tempo da dor, escrever é difícil. Qualquer palavra soa tortuosa, rouca, sem som. A metáfora gerada no meio do sofrimento é forte, brava... poética. Mas só dentro de nós mesmos, dentro de nossas mentes, dos nossos peitos carregados. Fora de nós: seja no papel, na parede ou escrita em letras de vento na voz, ela soa gasta, fútil, clichê. Como é possível tal mudança? Tal distorção? Se o céu for o sofrimento sentido, a dor desgraçada; as palavras escritas são como pássaros de asas arrancadas. Pássaros criados, gerados, desenvolvidos unicamente para voar, mas que por um acaso, engano ou maldição mal chegam a abraçar o vento.

          Mas talvez, só talvez, esse mal seja realmente necessário. É preciso que a dor primeiro passe para que ela seja sentida novamente. Afinal, escrever é fazer doer de novo, romper suturas, revelar fraturas. É ver a feiura da dor não lembrada, mas jamais esquecida. Para escrever talvez seja necessário que, primeiro, as lágrimas caiam, os gritos ecoem e as almas sofram. Pra depois, quando surgir a tão famosa calmaria pós-tempestade, possa-se relembra tudo de novo, mas sem os excessos... De forma igual e diferente. Talvez, só talvez, escrever seja re-doer. 

- F.A.R.S

Verso antigo, roubado de mim mesmo

Era um beija-flor de asa quebrada.
Coisa inútil, capenga,
Desnecessária.

Era um domador de dragões,
num tempo onde dragões
são apenas conto de fada.

Era uma ínfima Realidade.
E uma imensa Fantasia,
embora que desacreditada.

- F.A.R.S

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Era um vez, duas estrelas


        Era noite, fazia frio. O Sono espalhava seu pesado manto sob os homens, mas não há força que cale as estrelas. Uma delas, a grande estrela Nitid bailava em seu banco etéreo quando a pequenina Ellai lhe interrogou em tom de segredo:

-     Onde está a menina com cheiro de poeira de estrelas? Onde está?  A menina-pássaro, a    menina-tempestade, seus olhos por acaso a viram?
-      Ah, aquela menina-flor cujo rosto era apenas lábios e olhos ? Aquela cuja voz era vento?
-      Sim, esta. A menina que alimentava sonhos com botões de rosa.
-      Não sei o certo, tampouco sei o errado. Disseram-me que morreu.
-    Pois um rouxinol que por vezes embaraçou-se no cabelo dela e cantava junto a sua voz sussurrou-me um segredo. Disse-me o pior, disse que se apaixonou.
-    Ah, muito me entristece. Mas uma bruxa um dia me preveniu que o destino dela era perecer por amor. Nasceu marcada com a Palavra. Conte me mais sobre a desventura da menina-nuvem, que ela é cara a mim por ter cantado um louvor sob o luar em meu nome.
-     O rouxinol não disse-me mais nada. Mas um carvalho onde ela entregava-se ao badalar do sono disse que ela sussurrou enquanto dormia que seu amor era de um nobre.
-     Oh, que a Lua a guarde. A pequena menina apaixonou-se pelo Rei?
-     Antes o Rei, que nasceu guerreiro de coração limpo e livre. E pense, a menina de botões, dobradiças e penas amaria um Rei? Não, a menina gosta do singelo, do sutil, do brilho pequeno de pequenos olhos. A menina gosta de "pequenitudes".
-    Pois é verdade. A menina vivia de pés descalços a catar pequenos arremedos de linhas para tecer ninhos de andorinhas. Ela tem um querer profundo, mas atulhado de pequenas coisas. Diga-me sem demora quem fisgou o coração da menina feita de Floresta?
-     Digo-te que ela apaixonou-se pelo Conselheiro do Rei.
-    O Conselheiro?! Aquele que finge-se de bobo da corte e semeia olhos e ouvidos em toda parte?
-     Esse mesmo. Pergunto-me se havia sorte pior para a menina de coração feito de teias de aranha e promessas, coração frágil e efêmero. Apaixonar-se logo por um homem cujos sorrisos são tão falsos quanto fartos.
-      Não merecia destino tal como esse, gostasse daquele que assava pães e verdejava em olhos.
-      E não disse o pior, não contei a ti o ocorrido
-      Ele a traiu? Ele a machucou?
-      Sim e com requintes de crueldade. Disse a menina, pobre menina, que a amava; disse com os olhos. De delírio, ela cantou de amor a cada noite e poetizou os olhos dele a cada dia.
-     Bem disse a bruxa, ela nasceu marcada com a Palavra. Doce menina maldita. Seria um anjo, não fosse o pecado dos olhos.
-    E o Conselheiro, maldito, depois de 7 luas disse amava outra, a amazona nobre que impunha uma espada de ouro.
-       Pobre menina-estrela, seu peito deve sangrar com dores de traição. Sabe onde ela está?
-      Tanto não sei que a ti vim saber dela. Acho que fugiu. Caiu no livro e a história nunca a soltou
-        Dever ter virado rima, alunada como era.
-        Não, um verso
-        Estrofe?
-        Talvez, só talvez, poema.
-        De estrelas, será?

-        Não, de Amor.
(F.A.R.S)

quarta-feira, 18 de junho de 2014

"A lua lava mais branco"

       
A negra lavadeira tem feições curtidas de sol e boca com poucos dentes e muitos sorrisos. O corpo já anda envergado pelas muitas décadas ajoelhada a beira de riacho, lavando trouxas e trouxas de roupas sujas de suor e terra. As suas mãos, um dia lindas e com maciez de quem espalha carícias, hoje são enrugadas e maculadas pelo sabão de coco que lava até o sangue das brancas camisolas das esposas virgens.

         Acostumada a muito falar, em dias de sol canta a plenos pulmões as cantigas de luxúria e adultério que saem da boca do povo. Canções sem elegância, sem pudor. Como o verdadeiro povo é, rude e sem floreios. Mas canta feliz, canta sem medo. A lavadeira já é velha, mas tem alma jovem, fresca, alva como lençóis recém lavados. A lavadeira cheira a alecrim e consciência leve.

        Em dias em que a necessidade vence o descanso, a lavadeira trabalha a noite. Já dizia as velhas mocorongas: “A lua lava mais branco”. Ajoelhada entre as pedras do riacho, a lavadeira conta com a luz do luar para lavar o fino vestido branco da sinhazinha. Já não canta. Sussurra histórias. Vai dizendo como se o vento escutasse que o Homem é um anjo. Só que um anjo de uma única asa que sozinha não tem o poder de voar. E por isso que o Homem busca companhia, alguém para abraçar e com ajuda de mais uma asa chegar o céu. A lavadeira diz que isso, esse abraço que faz o voo possível, é Amor.

       As palavras vulgares da lavadeira são engolfadas pelo riacho e vão descendo junto a ele. A cada murmúrio da água batendo nas pedras do caminho, as palavras são repetidas e repetidas. “Uma mentira contada mil vezes se torna verdade”. Com asas d’água a palavra roda o mundo. De repente, acende em mim uma pergunta. A historieta da lavadeira é verdade? Na verdade não importa. A verdadeira pergunta, que perturba o sono não é sobre uma lavadeira simples. A pergunta que intriga e instiga é : Será que o Amor, é isso? Uma história contada e recontada, floreada e perfumada, que de tantas vezes repetida já não se sabe se é verdade ou uma mentira?

F.A.R.S

Sobre Trilhos de Trem

         Um senhor, de costas envergadas pelo peso dos anos, caminhava sobre os trilhos do trem. Caminhava e caminhava sentindo embaixo dos pés ora a aspereza de pedras miúdas ora a gélida presença do metal enferrujado. O peso de mil memórias guardadas através de décadas afim envergava suas costas doloridas, tornando o simples respirar torturante. Pobre senhor, repleto de vazios, fadado a não esquecer. Maldita é a memória que deixa aquilo que é doce e feliz voar para céus desconhecidos enquanto prende as angustias em nossas costas. Mesmo assim, o velho continuava a caminhar, executando a tarefa hercúlea de dar o próximo passo.

            Não sei em que parte do caminho, mas quando suas forças sucumbiram a tamanho desgaste ele começou a chorar. Pobre velho, se sentia Atlas a sustentar com as mãos nuas o peso do céu, mas ao contrário do antigo titã ele não trazia consigo apenas o firmamento. Ele levava nas costas seu céu, suas asas, seus pássaros... Levava sonhos queimados e fragmentos de dores passados... Levava seus amigos todos; com a vidas e memórias de cada um. E foi chorando estrada a fora. Suas lágrimas eram recebidas com indiferença pela terra fria, infértil. Tão pequenas eram elas! Os olhos castanhos-esverdeados já não choravam a décadas, pois ele nunca se permitiu chorar, nem cair. Não me admira que as lágrimas rasgassem seus olhos, tornando-se rubras de sangue enquanto caiam gota a gota.

            Oh, se não fosse esse asqueroso silêncio no caminho... Se pelo menos houvesse música ou o calor de vozes humanas! O toque de mãos que se comprimem, o toque de almas que se abraçam. Mas não há, a estrada é lugar frio, silencioso e solitário. Nem lugar a estrada é, é apenas a companhia daqueles que não tem mais ninguém

            E as lágrimas continuaram a cair. A terra já as recebi com carinho, pois agora as lágrimas eram grandes e gordas, com as chuvas de verão. Acredito que daqui à alguns meses há de nascer algo nesta terra. Um árvore, um rosa ou punhado vulgar de capim. Uma coisa é certa, há de nascer algo. A natureza é assim, selvagem, incontrolável, mas dê-lhe algo e ela o devolverá a você no tempo certo. Assim, não a culpo por nos pedir de voltar quando nossos anos se esgotam.

            O velho continua a tecer o seu caminho, molhando a terra e remoendo dores. 

  - F.A.R.S.